Cientista da USP denuncia descarte de moluscos da Gâmbia no aeroporto
Segundo o cientista Luiz Ricardo, uma carga de 20 moluscos foi incinerada quando foi confiscada no Aeroporto Internacional de São Paulo
atualizado
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Uma pesquisa sobre espécies de moluscos e conchas coletados na Gâmbia, chefiada pelo cientista e professor da Universidade de São Paulo (USP) Luiz Ricardo Lopes de Simone, 64, acabou incinerada ao chegar no Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, no dia 19 de maio.
Em entrevista ao Metrópoles, o cientista contou que foi ao país da África junto com a esposa e dois alunos do doutorando. Eles foram pesquisar a chance dos moluscos da costa litorânea da Gâmbia serem da mesma espécie das que vivem no Brasil, visto que os dois países foram vizinhos em um determinado momento da geologia terrestre.
Na expedição, o grupo coletou 20 quilos de material, incluindo moluscos de 4 a 5 quilos, marinhos e terrestres, carga que foi perdida após ser incinerada no Aeroporto de Guarulhos, no mês ado.
Segundo o professor Luiz, que dá aula no Museu de Zoologia da USP, o material seria usado em três projetos de pesquisa, quatro teses de doutorado e, pelo menos, cinco artigos científicos em andamento. Além disso, ajudaria estudos compartilhados com colaboradores de universidades conhecidas, como Harvard e a Universidade de Helsinque.
Ao todo, a equipe gastou R$ 120 mil na expedição. Segundo o professor, a pesquisa contou com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), com um investimento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) — por conta de um projeto próprio — e uma parte da própria USP, pelo museu de Zoologia.
“A gente teve que fazer um bem bolado de vários projetos para poder juntar aqui e ali, fizemos uma vaquinha para conseguir pagar tudo. Só a agem aérea foi R$ 70 mil. A licença para coleta dos materiais foi 700 euros. Foi tudo por água abaixo, porque o material foi todinho incinerado”, lamenta o cientista.
Barrados no aeroporto
Depois de 17 dias na Gâmbia, o grupo retornou ao Brasil. Segundo uma carta feita pelos pesquisadores e destinada às sociedades científicas brasileiras, antes de voltar ao país, todo o material foi devidamente processado, onde as amostras foram imersas em álcool etílico 98% durante pelo menos 24 horas para conchas e 72 horas para espécimes completos, depois conservada em freezer.
Antes do embarque no avião, os pesquisadores drenaram o álcool para cumprir as restrições da companhia aérea, “cientes de que a exposição prolongada sem conservante poderia comprometer rapidamente a integridade biológica das amostras, especialmente no caso dos moluscos.”
O grupo fez uma conexão na Turquia e seguiu para o Brasil. O pouso ocorreu no Aeroporto Internacional de Guarulhos, por volta das 18h.
“amos pelos trâmites de praxe, inclusive pela triagem de raio-X da bagagem. Ao detectarem volumes contendo as conchas e espécimes, os agentes da Receita Federal solicitaram a abertura das bagagens, removendo os materiais e os distribuindo sobre as bancadas do setor de inspeção, expondo-os ao ar livre, o que, imediatamente, iniciou o processo de ressecamento e deterioração, agravado pelo tempo prolongado de espera”, explicou o grupo no comunicado.
Em entrevista ao Metrópoles, o professor Luiz contou que os agentes foram bem ríspidos e abriram as bagagens sem ser importar muito com o conteúdo da mala e de como a ação deles poderia prejudicar a pesquisa. Foi a partir da terceira mala que o professor pode se aproximar para auxiliar na retirada e na exposição do material colhido.
O cientista deixou claro que, desde o começo da abordagem, apresentou os documentos que comprovavam a finalidade da coleta e a legalidade do transporte. Os agentes da Receita chamaram dois funcionários do Ibama, que segundo o pesquisador, chegaram uma hora e meia depois — nesse período, os moluscos estavam expostos de maneira inadequada, atrapalhando o processo.
Os agentes do Ibama fizeram a vistoria, analisaram os documentos e concluíram que o grupo estava liberado, pois a entrada da pesquisa seria legal. Porém, em cima da hora, já com o grupo reempacotando as malas, um dos funcionários do Ibama chamou uma agente do Ministério da Agricultura e Pecuária e Abastecimento (Mapa). Este, por usa vez, “adotou uma postura imediatamente impositiva e inflexível, exigindo uma guia de remessa tanto do país de origem quanto do Brasil, além de certificados sanitários de ambos os países”, diz o relato dos pesquisadores.
O grupo ainda contou que tentou argumentar, dizendo que os documentos não eram necessários levando em conta a Instrução Normativa Interministerial n° 32/2013. Os pesquisadores disseram que não foram ouvidos pelas autoridades.
“A fiscal afirmou, categoricamente, que, na ausência desses documentos, todo o material seria imediatamente incinerado”.
Após a ameaça, o grupo conta que um segundo agente do órgão chegou com uma postura “mais técnica e sensível”, ouvindo os argumentos e reconhecendo a importância do material colhido. Entretanto, formalizou a apreensão dos moluscos e entregou aos pesquisadores um “Termo de Fiscalização de Bagagem”.
Moluscos incinerados
O professor Luiz contou à reportagem que o agente garantiu que não iria incinerar o material apreendido e pediu para que o grupo fosse até a sede do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, no centro de São Paulo, para tentar a liberação dos moluscos.
“Vocês vão lá na central e tentam liberar, conversam. Eles liberando, eu libero para vocês”, teria dito o agente ao professor.
O cientista aceitou a retenção do material, mas sugeriu ir buscar uma espécie de balde com álcool para colocar os moluscos, a fim de tentar manter o material colhido em um estado adequado. Ideia que foi recusada pelas autoridades presentes no local, que teriam alegado que não era possível o retorno do homem caso ele deixasse a área restrita e nem levariam os moluscos para outro lugar.
Luiz deixou o aeroporto junto com os alunos. Na manhã seguinte, eles foram até a sede do ministério e conversaram com uma funcionária, argumentando a legalidade da entrada dos moluscos no país. Segundo o professor, a mulher entendeu e concordou com o grupo, dizendo que ia apenas ligar no aeroporto para acertar a liberação do material. “Eu fiquei aliviado, super feliz com os meus alunos”.
Porém, o alívio durou pouco. A funcionária demorou a voltar e, quando retornou, avisou, com semblante “meio triste”, que o material tinha sido incinerado.
O cientista não acreditou e lembrou da garantia do agente que havia conversado no aeroporto, que dizia que não iria incinerar o material. Questionada, a funcionária afirmou que os moluscos começaram a cheirar mal, aparentando estar estragado. Por isso, a carga foi queimada.
O professor, então, pegou o termo de apreensão que havia recebido no dia anterior e entrou em contato com um e-mail do ministério. Ele contou que, depois de dois dias, obteve uma resposta de um agente, dizendo que o material estava mal embalado. Por isso, a necessidade da incineração. Além da ausência, já justificada, do guia de importação.
“Eu falei ‘claro que estava mal embalado, vocês violaram, foram vocês que romperam todos os invólucros e o material [álcool] evaporou. Vocês não me deixaram trazer o álcool para preservar o material, e ele não ia feder se o material estivesse no álcool, que tem a mesma função da incineração. Por que incinerar? Exatamente para evitar contaminação, o álcool tem a mesma coisa'”.
“Parece que eu perdi um parente”
- Nada da amostra colhida na Gâmbia pôde ser aproveitada. Cerca de 20 quilos de moluscos e conchas foram incinerados e R$ 120 mil gastos a troco de nada. Essa é a sensação do professor. Luiz, que perdeu o pai recentemente, comparou a perca do estudo com a perca de um parente.
- “Parece que eu perdi um parente, sem brincadeira. Eu perdi meu pai há pouco tempo, é claro, não era a mesma proporção, mas o sentimento que fica no coração é igual, aquele vazio, aquela sensação de impotência, como se a gente tivesse que se conformar. Fica sem chão. Eu nunca tinha ado por isso”.
- Depois do ocorrido, o cientista conta que teve crises de hipertensão e precisou voltar a fazer tratamento, tomando remédios.
- Luiz conta que já fez esse transporte algumas vezes, seguindo o mesmo protocolo, e nunca teve problemas.
O que dizem as autoridades?
Em nota enviada ao Metrópoles, o Ibama negou que tenha sido responsável pela incineração do material colhido pelos pesquisadores.
“Estão isentos desse controle materiais de espécies não listadas na Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Flora e da Fauna em Perigo de Extinção (CITES) de peixes, crustáceos e moluscos aquáticos. Portanto, o Ibama não controla a importação de material biológico de moluscos de espécies não listadas na CITES”.
Já a Receita Federal informou que não registrou nenhuma atuação específica da Alfândega de Guarulhos no caso, “tampouco houve comunicação oficial de outros órgãos quanto à operação mencionada”.